Meu encontro profético com BOOKER PITTMAN, um dos grandes do Jazz.

Hoje em dia muito pouca gente sabe quem foi o Booker. Nasceu em 3 de maio de 1909 em Maryland, USA, e morreu dia 19 de outubro de 1969, em São Paulo. Ele tocava clarinete, saxofone alto e saxofone soprano, de uma forma brilhante, num estilo bem Kansas City, foi elogiado por importantes criticos de Jazz europeus e americanos. Tocou e gravou com os grandes, Count Basie, Armstrong, Lucky Millinder, Blanche Calloway. Gravou vários discos com diversas jazz-bands em Buenos Aires, e tenho essas gravações.

Conheci o Buca pessoalmente na ultima jam-session das Folhas, devia ser 1962, quando ele apresentou pela primeira vez como cantora a filha adotiva, Eliana. A sala estava lotada, eu sentei na beirada do palco e me encantei com o saxofone soprano, a ponto de considerar comprar um e tocar.
Falei com o Buca, ele me deu e autografou o programa manuscrito daquele show, que não sei onde foi parar, e comecei uma boa amizade com ele, que viajava muito entre São Paulo e Rio.
Bem que tentei que me desse umas dicas, mas a única coisa que falou foi “Play, man, just feel and play!”. Foi o que sempre fiz.
Esperei uma chance de tocar com ele, nem que fosse numa jam, mas nunca aconteceu.

Ouvi sobre ele a primeira vez em 1957, quando conhecí no cursinho Anglo Latino meu grande amigo e meu guru do Jazz, o Peter Dakowski, que tocou com ele em 1955 e 56, com o pessoal do São Paulo Dixielanders. Eles haviam resgatado o Buca do exílio numa cidadezinha nos confins do Paraná, e fizeram ele tocar de novo. Segundo contavam, o Philippe Corcodel, o trombonista, era caixeiro viajante e passou por essa cidadezinha; de noite, no hotel, ouviu uma bandinha tocando numa procissão da igreja local, e no meio da musica tinha um clarinete endiabrado fazendo improvisações incriveis sobre os hinos. Ele desceu correndo e descobriu que era um mulato com fala arrastada e sotaque americano, que identificou-se como Booker Pittman, Philippe imediatamente o convidou para ir a São Paulo e se integrar na sua Banda, com o que relutantemente, Booker concordou. Assim recomeçou a carreira do Buca, que havia sido dado como morto em um artigo do critico francês Hugues Panassié na revista Jazz Hot.

Quando Louis Armstrong esteve no Brasil em 1957, no aeroporto foi atacado por um repórter histérico que lhe enfiou o microfone no lábio. Por sorte se recuperou e deu um show na noite seguinte no Ginásio Ibirapuera. Eu estava lá, com o Peter Dakowski, e me surpreendi quando, depois de terminado o Show, ainda durante os aplausos tonitruantes reverberando na acustica de caverna do Ginásio, vi o Buca subir no palco e ser abraçado como velho amigo pelo Satch. Logo ele virou para sua banda, contou dois tempos, e atacaram um tema que não lembro mais qual foi, mas me parecia estar ouvindo os antigos duelos do Satch com o Bechet! A confusão era grande, e não consegui chegar perto para abraçar o Buca nem o Satch (este abracei anos mais tarde).

Quando acontecia de eu ir tocar no Rio com a formação original do Traditional Jazz Band, sempre dava uma escapada e ia visitar o Buca no seu apartamento da rua Barata Ribeiro. Da ultima vez, acho que foi em 1969, quando gravei um blues e um spiritual na TV com a Elis Regina e o Mariano, eu nem toquei a campainha: tirei o clarinete e toquei um chamado de bugle.
Ouvi ele gritar com voz abafada, lá de dentro:”Ofélia, abre a porta, é o baixinho!”. Ele estava muito mal, câncer na garganta, quase não conseguia falar.
Ofélia me disse que ele estava proibido de tocar pelo médico. Mas falar ainda podia, e sentamos na sala e me contou um monte de histórias de sua carreira, mostrando páginas manuscritas; “estou escrevendo minha biografia!”.
Na verdade a biografia saiu postumamente, mas cheia de inverdades e invencionices colocadas por pessoas que influenciaram muito mal a vida do Buca. Ele tinha um coração imenso, ingênuo e simplório, e algumas pessoas que tocaram com ele me fofocaram maldosamente que ele foi usado como plataforma de lançamento profissional para sua talentosa e linda filha adotiva.

Me fez sinal de silencio e sub-repticiamente tirou de baixo de um armário uma garrafa de pinga e deu um trago direto na garrafa. Me ofereceu, recusei, obrigado, ele disse: “A Ofélia não pode saber!”.

Ele fez silencio um momento, e me disse “Tito, vem ver uma coisa no meu quarto”. “Ei, Buca, que novidade é essa?!”. Mas eu o acompanhei. Ele abriu a porta de um guarda-roupa e tirou três cases de saxofones Selmer novinhos: um tenor, um alto e um soprano. Colocou em cima da cama e me disse, meio sem jeito: “Olha Tito, esses dois eu conheço, mas no soprano eu nunca toquei. Você pode dar uma tocadinha pra eu ver como é o som dele?” Bom, confesso que fiquei emocionado, não sabia o que dizer, mesmo porque nunca tinha tocado um soprano. Ele montou a boquilha e me deu, eu soprei, saiu um som forte e brilhante, ele deu um grande sorriso, e a Ofélia veio correndo da cozinha “Buca, para com isso, o médico proibiu!” mas deu meia volta quando viu que era eu. Buca olhou para mim, bateu no meu ombro e disse “É isso aí baixinho, soprano vai ser teu instrumento”.

Pouco depois de uns meses ele morreu em São Paulo. Saiu no jornal que o único musico presente no Aeroporto de Congonhas na despedida de Booker Pittman, quando do traslado do caixão para o Rio, era o clarinetista paulistano Tito Martino.